
Capítulo a parte, voltemos agora para a realidade de
Clara. Os dia eram deveras longos naquela repartição a qual preferiu chamar de
masmorra, mas que na verdade era o seu local de trabalho. Por mais que ela
tentasse distrair-se em seus pensamentos criativos e livres, seu corpo (que
parecia ter asas cortadas) ansiava pela liberdade.
E assim passava longas horas, olhando para o relógio de
tempo em tempo meio que na tentativa de, por um descuido, se perder e só se
encontrar no momento de ir embora novamente.
Mas como todo o ser alado (mesmo que por hora subtraído)
Clara encontrava a sua pseudo-liberdade no ultimo andar do prédio sujo e
encardido, onde havia alguns resquícios de ar, de sol e de paz.
Naquele curto intervalo de tempo, Ela experimentava um
misto de experiências que, embora longe de representar as fortes emoções pelas
quais ansiava seu coração, lhe serviam
como uma espécie de remédio para aquietar a mente.
O referido andar, não era nem um paraíso. Para ser mais
correto parecia mesmo um pedaço do inferno, uma espécie de purgatório. Era
sujo, era nojento, era o cenário perfeito para exorcizar alguns demônios
interiores, inclusive pela fumaça dos cigarros que ali tragavam que misturada
aos cheiros de restos de comida e de lixo espalhado pelos cantos, criavam uma
atmosfera fétida.
Mas porque ali estava sua liberdade momentânea? Não foi
sempre assim que Clara viu aquele local. Aliás, sua primeira impressão estava
mais para o cenário perfeito daquelas histórias de loucura e depressão. Como já
foi dito, Clara era munida da capacidade de criar seu próprio mundo e isso se
aplicava perfeitamente aos momentos de de desespero experimentados de quando em
vez.
Graças a sua imaginação, ela fazia daqueles instantes um
mergulho lento e profundo na vida dos que por ali perambulavam. Clara gostava
de imaginar o que se passava na vida daquelas vidas. Observava a forma como
eles comiam, a forma como olhavam para os arredores, fazendo um profundo
esforço para se tornar intima dos pensamentos daquele monte de estranhos.
Nunca trocou nenhuma palavra com qualquer uma daquelas
pessoas, preferia só observar pois assim sua imaginação tinha mais liberdade
para dar o desfecho que mais lhe agradasse para cada um.
A moça gorda de cabelo engraxado, comia seu feijão com
arroz com um apetite voraz como se tivesse fazendo a ultima refeição ou a
primeira depois de anos de jejum. O rapaz esquelético que fumava seus cigarros
quase que engolindo-os um a um parecia ter necessidade de consumir algo há
muito perdido.
A tentativa de Clara era se encontrar naqueles seres,
imaginar de certa forma como eles a viam e se dedicavam seu tempo restrito à
observá-la como ela fazia.
A liberdade figurada de Clara estava em viver por alguns
segundos essas outras vidas, sob as quais, mesmo que subjetivamente, ela
mantinha o controle e decidia o rumo de cada história. Clara na verdade nada
mais era do que uma viajante de corpos alheios ao seu.
E ela que pensava não gostar daquela rotina, na verdade
mal sabia que era dela que se alimentava, era daquela sensação de prisão que
surgia suas maiores inspirações para imaginar e criar do jeito que bem
entendesse. E a paixão onde estava? Justamente nisso: em figurar seu mundo
conforme fosse sua vontade. Livre de padrões, modelos, estigmas e imposições.
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