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terça-feira, agosto 18, 2015

Liberdade Figurada - Conto I


Era apenas mais um dia daquela rotina insolente na vida de Clara. Apaixonada por emoções de toda ordem, ela se alimentava dessas fagulhas que faziam brilhar aqueles olhos amarelos. Eram essas sensações que lhe davam um fôlego ávido e uma coragem extra para suportar horas tão entediantes e cinzas que preenchiam boa parte da sua vida. 

Capítulo a parte, voltemos agora para a realidade de Clara. Os dia eram deveras longos naquela repartição a qual preferiu chamar de masmorra, mas que na verdade era o seu local de trabalho. Por mais que ela tentasse distrair-se em seus pensamentos criativos e livres, seu corpo (que parecia ter asas cortadas) ansiava pela liberdade.  

E assim passava longas horas, olhando para o relógio de tempo em tempo meio que na tentativa de, por um descuido, se perder e só se encontrar no momento de ir embora novamente.  

Mas como todo o ser alado (mesmo que por hora subtraído) Clara encontrava a sua pseudo-liberdade no ultimo andar do prédio sujo e encardido, onde havia alguns resquícios de ar, de sol e de paz.  

Naquele curto intervalo de tempo, Ela experimentava um misto de experiências que, embora longe de representar as fortes emoções pelas quais ansiava  seu coração, lhe serviam como uma espécie de remédio para aquietar a mente.  

O referido andar, não era nem um paraíso. Para ser mais correto parecia mesmo um pedaço do inferno, uma espécie de purgatório. Era sujo, era nojento, era o cenário perfeito para exorcizar alguns demônios interiores, inclusive pela fumaça dos cigarros que ali tragavam que misturada aos cheiros de restos de comida e de lixo espalhado pelos cantos, criavam uma atmosfera fétida.  

Mas porque ali estava sua liberdade momentânea? Não foi sempre assim que Clara viu aquele local. Aliás, sua primeira impressão estava mais para o cenário perfeito daquelas histórias de loucura e depressão. Como já foi dito, Clara era munida da capacidade de criar seu próprio mundo e isso se aplicava perfeitamente aos momentos de de desespero experimentados de quando em vez.


Graças a sua imaginação, ela fazia daqueles instantes um mergulho lento e profundo na vida dos que por ali perambulavam. Clara gostava de imaginar o que se passava na vida daquelas vidas. Observava a forma como eles comiam, a forma como olhavam para os arredores, fazendo um profundo esforço para se tornar intima dos pensamentos daquele monte de estranhos.
 

Nunca trocou nenhuma palavra com qualquer uma daquelas pessoas, preferia só observar pois assim sua imaginação tinha mais liberdade para dar o desfecho que mais lhe agradasse para cada um.


A moça gorda de cabelo engraxado, comia seu feijão com arroz com um apetite voraz como se tivesse fazendo a ultima refeição ou a primeira depois de anos de jejum. O rapaz esquelético que fumava seus cigarros quase que engolindo-os um a um parecia ter necessidade de consumir algo há muito perdido.


A tentativa de Clara era se encontrar naqueles seres, imaginar de certa forma como eles a viam e se dedicavam seu tempo restrito à observá-la como ela fazia.  

A liberdade figurada de Clara estava em viver por alguns segundos essas outras vidas, sob as quais, mesmo que subjetivamente, ela mantinha o controle e decidia o rumo de cada história. Clara na verdade nada mais era do que uma viajante de corpos alheios ao seu.


E ela que pensava não gostar daquela rotina, na verdade mal sabia que era dela que se alimentava, era daquela sensação de prisão que surgia suas maiores inspirações para imaginar e criar do jeito que bem entendesse. E a paixão onde estava? Justamente nisso: em figurar seu mundo conforme fosse sua vontade. Livre de padrões, modelos, estigmas e imposições.

 

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